O MOVIMENTO ABSOLUTO E A FÍSICA DE NEWTON


Publicado no Espaço Científico Cultural em 27 de Novembro de 2004

Alberto Mesquita Filho

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 4ª Parte e Anexosframes



10 - Argumentos newtonianos a favor do espírito da matéria e/ou contrários ao éter

Concluída a análise da experiência de pensamento apresentada, vamos procurar evoluir de maneira a que possamos tentar entender porque o movimento absoluto seria tão fundamental para Newton a fim de que ele pudesse quiçá chegar nos princípios filosóficos de sua filosofia natural, evoluindo, desta maneira, dos princípios matemáticos na direção de um maior entendimento das causas subjacentes.

Ao final da seção 11 do Livro I dos Principia, há um escólio, via de regra pouquíssimo comentado, onde Newton agrupa, num mesmo contexto, forças de atração devidas a causas diversas, sejam essas conhecidas ou imaginárias. Newton afirma:

Eu uso aqui a palavra "atração", em um sentido geral, para toda tendência, qualquer que ela seja, dos corpos aproximarem-se um do outro, quer essa tendência ocorra como resultado da ação dos corpos, seja puxando um para o outro ou agindo um sobre o outro por meio de espíritos emitidos, quer ela se origine da ação do éter ou do ar ou de qualquer outro meio que se possa imaginar ¾seja este meio material ou imaterial¾ que impele de alguma maneira, um para o outro, os corpos aí flutuantes [13].

Vamos analisar essas causas diversas uma a uma. No primeiro caso (corpos puxando-se entre si) o exemplo típico parece-me ser aquele de sua experiência de pensamento descrita no item 2 (globos giratórios unidos por uma corda) e, sendo assim, haveria muito pouco o que acrescentar ao já discutido.

O segundo caso, ação dos corpos através de espíritos emitidos, estaria mais de acordo com a idéia daquela alguma coisa imaterial responsável pela gravitação e que teria sido melhor comentada em uma das cartas que Newton escreveu a Bentley:

É inconcebível que a matéria bruta inanimada possa, sem a mediação de alguma coisa, que não é material, atuar sobre, e afetar outra matéria sem contato mútuo, como deve ser, se a gravitação no sentido de Epicuro for essencial e inerente a ela. E esta é uma razão pela qual desejo que não me seja atribuída a gravidade inata. Que a gravitação seja inata, inerente e essencial à matéria, de modo que um corpo possa atuar sobre outro a distância, através do vácuo, sem a mediação de mais nenhuma outra coisa, pela qual e através da qual sua ação e sua força fosse transportada de um até outro, é para mim absurdo tão grande, que acredito que homem algum que tenha em questões filosóficas competente faculdade de pensar, possa cair nele. A gravidade deve ser causada por um agente que atua constantemente, de acordo com certas leis, mas deixo à consideração de meus leitores se este agente é material ou imaterial [14].

É digno de nota que Newton, após firmar sua crença na imaterialidade dessa alguma coisa, a qual sem dúvida alguma é o mesmo espírito dos outros textos, tenha deixado a critério do leitor a opção pela crença ou descrença em sua afirmação primeira. Com efeito, em fases distintas de sua vida o próprio Newton chegou a pensar de maneiras diversas; e mesmo nas fases cronologicamente mais avançadas, manteve a postura de aceitar um fato incontestável: a carência, no séculos XVII e início do século XVIII, de experimentos em número suficiente para que pudesse determinar e demonstrar, de maneira exata e irrefutável, as leis que governam as ações desse suposto espírito, conforme citação exposta no item 9.

Uma terceira possibilidade aventada por Newton seria a de forças originadas pela ação do éter ou do ar. Quero crer que o éter aí referido seria aquele meio hipotético e de natureza material de seus contemporâneos, o mesmo que revigorou no século XIX e a comportar a propagação das ondas mecânicas de luz. Poderia também ser pensado como um meio a comportar os vórtices de Descartes e, neste caso, a representar uma extensão da matéria visível. Nos dois casos fica-me a impressão de que este éter funcionaria como um meio a transmitir movimentos de uma maneira muito semelhante, pelo menos quando encarada sob o ponto de vista macroscópico, daquela que hoje exemplificamos com o andar no vácuo dos automobilistas. Isso justificaria o fato de Newton ter agrupado ar e éter num mesmo contexto. Aliás, veremos no próximo item que até mesmo esse andar no vácuo dos dias atuais admite, implicitamente, a existência ou de um éter imaterial, a permear o vazio existente entre as moléculas de ar, ou então de alguma outra coisa emitida pela matéria em virtude de seu movimento [15].

Na questão 28 da Óptica III, Newton refere-se à dupla refração observada no cristal da Islândia, concluindo que a teoria da luz de Huygens implicaria na coexistência de dois éteres distintos a locupletarem um mesmo espaço. Após considerações outras, agora de natureza mecânica (em especial uma resistência que tornaria impraticável as operações da natureza, fazendo-a definhar), Newton conclui pela rejeição desse éter material com as seguintes palavras:

E para rejeitar tal meio temos a autoridade daqueles mais antigos e mais celebrados filósofos da Grécia e da Fenícia, que fizeram do vácuo, dos átomos e da gravidade dos átomos os primeiros princípios de sua filosofia; simplesmente atribuindo a gravidade a alguma outra causa que à matéria densa [16].

A quarta possibilidade aventada seria aquela de forças originadas pela ação de qualquer outro meio que se possa imaginar, material ou imaterial. Ao que parece Newton está conjecturando a respeito de um possível éter imaterial, embora não seja comum ele se reportar a este hipotético meio através da palavra éter. De qualquer forma, esse suposto éter imaterial permeia toda a sua Óptica III, mascarado sob a idéia de vibrações a intermediarem as ações entre os corpos materiais e os corpúsculos newtonianos de luz. Na Questão 17, por exemplo, lê-se o seguinte:

E não são essas vibrações propagadas a partir do ponto de incidência a grandes distâncias? E elas não alcançam os raios de luz, e alcançando-os sucessivamente, não os tornam facilmente refletidos e facilmente transmitidos... [17]

A conclusão a que chegamos é que Newton, apesar de afirmar não dispor de experimentos em número suficiente, conseguiu analisar vários experimentos, a ponto de ir excluindo logicamente um a um dentre os vários possíveis agentes causais das forças, restando-lhe então duas opções: ou existiria de fato um espírito imaterial emitido pela matéria ou, então, existiria um éter imaterial a comportar essas vibrações. Essas vibrações seriam análogas, se bem que de outra natureza, àquelas descritas nos fenômenos ondulatórios mecânicos que ocorrem nos meios materiais, como por exemplo no ar ou na água.

Sem dúvida alguma, Newton vivenciou, no século XVII, um dilema muito semelhante àquele por que passaram os físicos clássicos do século XIX quando começaram a questionar a natureza corpuscular da luz, qual seja: Seria a luz corpuscular e emitida pelos corpos, ou seria a luz ondulatória e meramente o resultado da transmissão de momento através de um meio mecânico? O dilema de Newton era então o seguinte: Seriam os agentes dos campos entidades imateriais (espírito da matéria) emitidas pelos corpos através do vazio, ou seriam os agentes dos campos entidades ondulatórias (vibrações) e a transmitirem momento através de um meio imaterial (e, portanto, não exatamente o mesmo éter admitido por outros autores)?

É interessante perceber que se dermos uma conotação mais ampla ao vocábulo éter, poderemos dizer que ao optarmos por um espírito da matéria (e, portanto, algo de natureza imaterial) estaremos, de alguma maneira, firmando a idéia da existência de um éter imaterial não fixo (ou seja, não exercendo o papel de meio) mas emitido e a se propagar pelo espaço. Por outro lado, ao optarmos pelas vibrações citadas por Newton estaremos firmando a idéia da existência de um éter também imaterial, mas fixo, maleável (tal e qual uma gelatina) e incapaz de opor resistência aos corpos materiais. O ponto em comum das duas idéias seria tão somente a imaterialidade desses supostos éteres.

Ainda que seja possível, através da aceitação de qualquer dessas duas condutas acima apontadas, pensarmos numa recuperação total da física genuinamente newtoniana, decorrente de uma reformulação das interpretações do observado em experiências efetuadas nos séculos XIX e XX, quero crer que ainda não há um número suficiente de experimentos a resolver, de uma vez por todas, o dilema vivenciado por Newton e, curiosamente, deixado de lado pela grande maioria de seus mais obstinados seguidores.

11 - Newton e a informação do movimento

Embora Newton não tenha deixado explícito nada a respeito de como seria a ação intermediada pelo espírito da matéria, a se traduzir em forças, podemos argumentar, analisando alguns de seus textos, que ele teria especulado bastante a respeito. Digna de nota é a idéia de que o espírito da matéria seria decorrente do movimento da matéria, ou seja, emitido pela matéria em virtude de seu movimento. Seria então algo como que a informar o tipo de movimento da matéria e a reproduzir esse movimento em partículas contíguas. Esse dado vem bastante a calhar, pois se existe uma entidade a denunciar o movimento, a comprovação desta existência se prestaria a corroborar a idéia de um movimento absoluto. Ou seja, o espírito da matéria somente seria emitido por partículas efetivamente em movimento absoluto. Em outras palavras, seria o agente a denunciar o absolutismo do movimento. Uma simetria mecânica perfeita: a matéria, por estar em movimento absoluto, geraria e emitiria agentes que se prestariam a promover mudanças do movimento absoluto de outras matérias.

No trabalho incompleto e não publicado de Newton, intitulado De Aere et Aethere, escrito por volta de 1679, ao discorrer sobre a experiência de Boyle, Newton afirma o seguinte:

Suponhamos A, B e C, três partículas em estado de repouso; sendo B posto em movimento pelo calor em direção a A, até o ponto R, ele afasta A para uma distância maior e, pelo inverso da mesma ação, ao voltar para S, ele afasta C, e assim por diante; B repele alternadamente A e C com um movimento vibratório, e A e C repelem similarmente suas partículas vizinhas,... [18] [A figura a seguir faz parte do original.]

figura avulsa

Ou seja, a partícula B, sendo posta em movimento em direção a R, empurra a distância a partícula A, pois B e A não se tocam. De maneira idêntica, ao caminhar para S, empurra a partícula C. Ora, qual seria o agente dessa força se não algo relacionado ao movimento de B e informado a A? A dúvida seria sobre a natureza desse agente da informação: Seria algo emitido por B? Seria a vibração de um meio imaterial (pois entre A e B somente existe vazio) produzida pela movimentação de B?

No mesmo trabalho, e logo a seguir, Newton faz a seguinte consideração:

Com base no mesmo princípio, o movimento ondulatório, pelo qual são propagados os sons é fácil de explicar.

Admitimos hoje que o som não se propaga através de trombadas (no sentido macroscópico do termo) entre partículas, mas sim da transmissão de momento de uma partícula que vibra para outra, e através de um vazio intermolecular, exatamente como propôs Newton. Então pergunto: O que é que estaria a se propagar entre uma partícula e outra? Seria o espírito da matéria? Seriam vibrações de um éter imaterial? Que mais poderia ser?

Newton não se atém a essa repulsão mas dá a entender que seriam possíveis outros movimentos e em outras direções. E, com efeito, existem também as ondas mecânicas transversas, a denunciarem a propagação, no vazio intermolecular, de um movimento vibratório e a simular um arraste conseqüente ao movimento da partícula emissora. No que diz respeito à gênese comum de atração e repulsão, isso está explícito na questão 31 da Óptica III:

E como em álgebra, onde quantidades positivas desaparecem e param, ali onde começam as quantidades negativas, assim também na mecânica, onde a atração cessa, ali deve suceder uma virtude repulsiva. E que existe uma tal virtude parece se seguir das reflexões e inflexões dos raios de luz. Pois os raios são repelidos pelos corpos, em ambas situações, sem que haja um contato imediato com o corpo que o reflete ou que o inflecte [19].

Seria possível generalizarmos essa idéia a ponto de concluirmos que toda força seria consequente ao movimento absoluto da matéria? A tarefa não me parece nada fácil e por vários motivos. Em primeiro lugar, diria que tanto o eletromagnetismo quanto a gravitação deveriam comportar profundas revisões em seus alicerces. Lembro que Maxwell tentou, sem sucesso, mecanizar o eletromagnetismo tomando por base uma analogia, de natureza matemática, com a mecânica dos fluidos. Digo também que não será fácil arquitetar um modelo funcional a justificar como, através única e exclusivamente de seu movimento, as partículas seriam capazes de gerar a gravitação, apelando-se para construtos geométrico-analógicos a apoiarem-se na idéia do andar no vácuo dos automobilistas. Mesmo porque, uma partícula em vibração deveria alternar efeitos atrativos com efeitos repulsivos [20], logo, uma teoria a apoiar-se nesse modelo deveria levar em conta a existência de uma repulsão gravitacional, bem como explicar a ausência desse efeito no mundo macroscópico. Como seria possível à natureza nos ocultar essa repulsão, que poderia ser pensada como uma antigravitação? Há que se lembrar também da não propagação de efeitos ondulatórios de natureza mecânica (som, por ex.) no vazio sideral ¾ainda que se propaguem através do vazio intermolecular¾ enquanto que tanto a gravitação quanto o eletromagnetismo estão imunes a essa aparente resistência à propagação através do vácuo. À parte essas dificuldades, encaradas por muitos como intransponíveis, quero crer que ainda assim vale a pena tentarmos recuperar a genuína física newtoniana, sob pena de nos perpetuarmos na condição de filósofos da incerteza e/ou, como diria o poeta Carlos Drummond, de nos contentarmos com a constatação de que no meio do caminho tinha uma pedra ¾e, não obstante, nada fizemos para removê-la.

Anexos:

a) Sobre a assimetria da experiência de pensamento:

Verifiquemos antes a assimetria da experiência de pensamento descrita no item 4. Uma análise relativística ingênua do problema poderia nos dar a sensação que no referencial do mini-lab a energia mecânica não se conserva. Este aparente paradoxo relaciona-se a uma assimetria inerente à experiência de pensamento e que estaria sendo mal interpretada. Vejamos como seria esta interpretação ingênua e, acima de tudo, errada. Pensemos apenas no que está acontecendo com a bolinha C.

Observador O:

Antes Depois
Ec da bola: ½ mv² Ec da bola: 0
Ep da mola: 0 Ep da mola: ½ mv²
Emec Total: ½ mv² Emec Total: ½ mv²

Observador O’:

Antes Depois
Ec da bola: 0 Ec da bola: ½ mv²
Ep da mola: 0 Ep da mola: ½ mv²
Emec Total: 0 Emec Total: mv²

Ou seja, no referencial de O a energia mecânica se conserva, mas no referencial de O’ não!

b) Resolução do “paradoxo”: [21]

O erro da análise anterior reside na desconsideração da reação a ser observada na colisão bola-mola. Assim sendo, parte da energia da bola C teria sido incorporada ao movimento do laboratório como um todo (pois a mola está fixa ao teto do laboratório). Ou seja, parte da energia da bola (½ mv2) transforma-se em energia potencial da mola e parte em energia cinética do laboratório onde está situado o observador O. Em termos de movimento esta energia cinética poderá ser desprezível, mas não é desprezível em relação as energias que estão sendo consideradas para o fechamento do balanço energético. O observador O deveria considerar, em seus cálculos, a energia cinética do laboratório de massa M. Ou seja, antes do choque a energia cinética total do laboratório seria ½ Mv2 e após o choque a energia mecânica total deveria incorporar a variação (sob certos aspectos desprezível) da velocidade v do laboratório de massa M.

Na prática, e já que trata-se de uma experiência de pensamento, podemos anular este efeito promovendo uma simetria mecânica ao problema. Suponha que ao acionar o mecanismo que coloca o mini-lab em movimento, o observador O colocou também em movimento uma segunda bola C’ a se chocar com uma outra mola também distendida e em oposição à mola que recebe o impulso da bola C (figura 10). Neste caso podemos, sem problemas, ignorar qualquer possível movimentação do laboratório (a simetria nos garante a inercialidade deste movimento) e perceber que a energia se conserva nos dois referenciais. Neste caso a energia de cada bola se transforma totalmente em energia potencial da mola correspondente (vide tabelas a seguir):

figura 10
Figura 10: Explicação no texto

Observador O:

Antes Depois
Ec das bolas: mv² Ec das bolas: 0
Ep das molas: 0 Ep das molas: mv²
Emec Total: mv² Emec Total: mv²

Observador O’:

Antes Depois
Ec das bolas: 2mv² Ec das bolas: mv²
Ep das molas: 0 Ep das molas: mv²
Emec Total: 2mv² Emec Total: 2mv²

* * * * *

 

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[13] Principia (op. cit.), p. 588.

[14] Nota de rodapé do livro de Lacey (op. cit.), p.142.

[15] MESQUITA FILHO, A. (2003): Conversa de Botequim ¾Resposta à pergunta “Como é que um campo imaterial pode interagir com a matéria conforme as noções newtonianas de força” ¾ Editorial da revista Integração: IX(34):163-4, 2003.

[16] Optiks, (op. cit.), Livro III, Questão 28, p. 369.

[17] Optiks, (op. cit.), Livro III, Questão 17, p. 348.

[18] COHEN, I. Bernard e Richard S. WESTFALL (1995): Newton: Textos, Antecedentes, Comentários, (Tradução, 2002), Contraponto, Rio de Janeiro, p. 58.

[19] Optiks, (op. cit.), Livro III, Questão 31, p. 395.

[20] MESQUITA FILHO, A. (1984): Os átomos também amam, Ed. da USJT, São Paulo, pp. 188-96.

[21] Coloco paradoxo entre aspas pois trata-se, na realidade, de um erro de interpretação e não de um paradoxo propriamente dito.

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